Tratado dos anjos afogados

Marcelo Abelha Pedro; Rodrigues
Nicodemos Neves Sena Editora e Livraria - ME

40,00

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SIM AOS AFOGADOS - Prefácio de Mariana Ianelli* “Fala-se em vão de justiça, enquanto o maior dos navios de guerra não se despedaçar contra a fronte de um afogado” - Paul Celan Aqui não atravessamos o poema: somos por ele varados. Ficamos abertos, fendidos para o encontro, “vítimas vivas / do tempo”, no fogo ondulante entre o ainda-não e o não-mais. Somos passagem, sopro que anima o poema e dá vôo à grande Fênix que ele foi, é e será. Chegamos a esta clareira da presença, a este Ainda-e-Sempre de que falava Paul Celan, poeta de luz submersa em sombra, de quem Marcelo Ariel conhece a flor. “Suavemente penetrei num jardim / onde a única árvore existe”, canta Ariel. Aqui estamos, onde o sonho se cristaliza, aqui nos encontramos, onde a orquídea do silêncio se arregaça, juntos colhemos da palavra o seu bastante: tudo o que lhe falta dizer. Ariel, na sua “intuição selvagem”, escreveu uma vez que gostaria de pintar “apenas as nuvens, o mar e as folhas que caem no chão”. Misturadas as tintas e as águas, tempos depois, um raio explode no coração do mundo, como em uma das telas incendiárias de William Turner: o Tratado dos anjos afogados. Se “nenhuma frase será capaz de traduzir / esse vítreo sentimento vasto” do poeta, há, no entanto, a música no fundo de uma voz que suplanta com o seu murmúrio de fonte o estrondo da barbárie, o horror humano, a obscuridade; há um outro sol absoluto se imiscuindo nos vãos da vida transbordada; há o mais além dos nomes, o mistério latente no poema, a ponto de ser amado. Pois amemos, sem desunir luz e sombra. Movido pela metamorfose, algo lamentavelmente raro na poesia contemporânea, Ariel se fantasmagoriza, transmudado em ninguém, e, moldando sua matéria de sonho, silêncio e saudade com um pincel de bruma, torna-se Ulisses diante do ciclope: “qualquer homem pode ser Ulisses / caminhando na praia ao entardecer / Se na gruta de si mesmo ecoa em tudo / a pergunta do ciclope-mundo”. Contra a navalhada cotidiana, vai o poeta rasgando o espaço escuro com um “diamante (...) capaz de reconhecer a alma ou seja a terrível gratuidade da beleza” e, por essa abertura afogueada, também ele se abre em plena transparência para “o encontro de uma autêntica filia”. Assim trespassado pelo poema, Ariel elide o “espelho dos distanciamentos” e convoca o espírito para além da palavra espírito, o amor para além da palavra amor, no “azul / feito de gelo / flamejante”. Trespassados também ficamos nós, pelo afeto, feridos, sim, por essa chaga de estrelas dentro da noite. E essa chaga pode iluminar-se bem ali, no canto do poeta, como de fato se ilumina, mal contida entre parênteses: “(Ainda estou no açougue-presídio, a chegada da tropa de choque não me acordou do metafísico)”. Balas perdidas, chacinas, granadas, valas escancaradas, e Ariel põe Simone Weil a pensar. O inferno se alastra? Pois o poeta de Cubatão caminha por ele, e sonha: “penso, logo, sonho: / (...) Sonho que não existo.../ Sonho com Baudelaire me dizendo que: ‘A vida humana vale menos do que uma fábula de Akutagawa’, / Sonho com Jorge de Lima lendo ‘A Invenção de Orfeu’ para Brian Wilson, / Sonho que sou um peixe de gelo / e lentamente me transformo em um peixe de fogo, / Sonho que acordo e não me lembro onde deixei meu corpo”. Em um dos diálogos estelares deste Tratado, conversam Francis Ponge e Paul Celan. E se imaginássemos o diálogo possível entre Celan e Ariel? Talvez ambos se calassem, simplesmente. Mas no olho do silêncio, em meio à insistente negativa do mundo, nosso poeta guardaria “algo / melhor do que uma resposta”: sim aos afogados, contra os quais o maior dos navios de guerra não se despedaçou. ___________ *Mariana Ianelli é jornalista, poeta e mestre em Literatura e Crítica Literária, autora dos livros Trajetória de antes (1999), Duas Chagas (2001), Passagens (2003), Fazer Silêncio (2005) e Almádena (2007) – todos pela Editora Iluminuras, SP.